DORMÊNCIAS DO TEMPO
Carlos de Hollanda
Não queria me molhar e, assim, espero que a chuva passasse. Protegia-me a cobertura daquela varanda. Aberta dos lados, se estivesse ali o vento, eu teria seguido meu caminho encharcado. Como era o verão que regia aquela chuvarada, era só ter paciência.
Naquela varanda, uma cadeira de balanço daquelas de madeira com assento e encosto de vime. Lembrei-me de meu relacionamento com esse tipo de cadeira, mais exatamente a cadeira de balanço de meu avô. Para mim era um mistério aquele móvel que parecia ter vida própria, balançando-se depois que alguém dela saíra. E o medo de cair para trás? Aquele objeto parecia ter o poder de lançar-me em um mundo desconhecido, assustador…
Sentei-me. Aqueles braços recebem os meus. Veio a infância. Um calafrio percorre meu corpo. Leve tonteira. Medo. Levanto-me. Bobagens! Sento-me novamente. Começo a balançar a cadeira. A que para mim sempre foi um mágico objeto, aceita minha proposição e assume o comando da ação. É, agora, um objeto vivo que, misteriosamente, segue embalando minha espera. Faltava apenas o colo de minha avó que me embalava sentada em uma cadeira destas… Espero a chuva cessar para seguir… Mas, seguir para onde? Aonde eu ia mesmo? Poderia ser para ali mesmo que precisava vir. Um chamado vivo me prendia àquela casa. Em algum ponto eu parei, ou parou minha vida, que precisa ser explicada, vivida, revivida.
A casa, calada, tudo calava. A varanda esperava comigo, sob seu telhado, sob nosso silêncio de espera. A casa dormia.
Ergo-me da cadeira. Vejo-me criança pensando na misteriosa força que prolonga o balançar daquele objeto. Voltei-me para a porta na varanda. Depois de sua vidraça, o tempo cessara. Na sala, almofadas superpostas sobre o tapete verde-claro; em uma parede, a estante de livros com um gravador de fitas (antigo, de carretel), livros, revistas, vários objetos de decoração e relógios, pequenos relógios de formatos vários, imóveis, inúteis em sua tarefa de marcadores de tempo. Retratos, eternizando momentos de pessoas que, depois, seguiram seus caminhos, seguiram vivendo em direção ao desconhecido, ao imponderável da vida. Sobre uma porta, um grande relógio de parede, parado. Marca dez horas. Do dia? Da noite? Não faz diferença… Parecia que, de repente, alguém entraria na sala pela porta sob o relógio. Mas, por ele estar parado, não deveria haver alguém em casa. E este dado assustava-me. Corre-me um calafrio. A temperatura baixara. A casa prendia-me o olhar na sala. A chuva cessara. O sol queria vir e vem puxado pelas nuvens que descobriam o céu. Com a presença da luz solar, certo alívio percorria meus pensamentos e movimentos que afastaram de mim o estranhamento daquela vivência.
Alguns passos de caminhada em frente. Volto-me e enquadrei a casa. A porta na varanda estava aberta… Quis voltar. Não! Olhei de novo. Resvalei o olhar um pouco para a esquerda. Havia um cavalo, parado.
Alguém chegara… Alguém conduzira aquele cavalo até aquela casa. Provavelmente esperou, como eu, o passamento da chuva, depois do que seguira seu caminho para a casa… Mas de onde viera? Quem viveria ali senão o vazio, senão o abandono? Nada era sinal de vida, da cotidiana vida. Tudo apontava para o fato de que ali ninguém vivia ou vivera. Não, positivamente ninguém morava ali!
Havia entre o Passado e o Presente a necessidade de uma explicação, um necessário sentido.
Passei, hoje, outra vez, pela casa. Olhei para os lados, examinando. Tudo estava fechado. Fui ao quintal. Sentia um estranhamento enquanto percorria a alameda lateral, passando pelas janelas fechadas, venezianas abertas com as cortinas também abertas. Havia uma luz acesa. Apoiei-me em uma reentrância da parede, subi um pouco o alcance do olhar. Olhei. Ninguém…
Nos fundos da casa, um grande quintal. Árvores misturavam-se com o vento e com uma chuva peneirada que não queria chegar ao chão e, assim, ficava procurando os lados, leve, mas caindo visível. Voltei pelo outro lado. Toda a parte exterior da casa estava vulnerável à ação do descaso. Havia alguém em tudo por ali: o abandono. Havia um abandono pesado, que circulava minha pele, uma gravidade nova na terra, um peso sem corpo, sem ruídos, afônico. O silêncio de tudo, da casa adormecida, inconsciente, arfante ao medo do muro impalpável do fundo do quintal que se disfarçava por trás da bananeira, do mato e do declive do terreno. Vinha esta ideia comigo, ao retirar-me. E eu me sentia emergindo de um fundo de mar, a cada passo que dava. O corpo pesava-me como se uma força me agarrasse com mão de angústia, de súplica. Algo pedia minha presença como mediador de mistérios que, necessariamente, precisavam revelar-se.
Contudo, continuei. Continuei retirando-me daquela ambiência. Caminhava a passos difíceis presos à estranha gravidade. O peso decrescia, o portão aproximava um alívio. Do outro lado da rua, aquele cavalo do dia antes. Eu estava de costas para a porta, para a casa e me sentia preso ao chão. O cavalo lá à frente, a porta vivendo às minhas costas, saindo do chão, da parede. Mexendo-se sobre mim, crescendo, enquanto eu diminuía de tamanho. A cadeira balançava-se. O cavalo sumindo. Algum vento?
Correria rápido ao portão. Ficara suspenso naquele momento em que decido, confuso, se me voltava para ficar de frente para o mistério ou se me mantinha no obscuro limiar do desconhecimento. Voltei-me. Fui à porta. Sacudi, examinei, sacudi. Abriu-se rangente. Entro. Voltei-me para a porta. Fechei-a . Sacudi-a. Com os solavancos, o trinco retraía-se. Soltava a porta do portal, permitindo que se abrisse. Um trinco que só se abriria por dentro estava inoperante, defeituoso, indefeso.
Da porta sob o relógio, dormia surpreso um pequeno corredor. À minha frente, uma porta. À direita e à esquerda, duas portas em cada parede. Todas trancadas, opacas, lisas, mudas… Desta forma as portas continuavam e as maçanetas e fechaduras sorriam inexpugnáveis. Sentia que as grossas madeiras pesavam nas dobradiças. Estas, no entanto, as suportavam tranquilamente, eternamente… Há quanto tempo? Desde quando cessara a vida naquele espaço cuja atmosfera remetia à vida? Mas que vida? Que desabalada sucessão de pensamentos remetia minha vontade para o desconhecido, para o encontro com o desconhecido? Fico ali, secular, naquele imóvel instante.
Pouco depois, ruídos na fechadura da porta, barulhos na sala atrás de mim, na rua, ao redor, em tudo. Da porta que se abrira, saía minha tia, moça ainda.
– Meu filho, você ainda não tomou banho?
Olhei-me. Estava de calças curtas, sem camisa, de tênis e todo sujo. Eu, menino. Eu estava menino… Minha tia entrava pelo espaço que a porta abrira e trazia consigo uma toalha. Abria a porta em frente a mim e o banheiro aparece. Seu olhar disse-me para pegar a toalha e entrar. O banheiro foi-se chegando, mas eu ficara no mesmo lugar. Poderia eu falar com ela, poderia tocá-la, abraçá-la, beijá-la? Poderia dizer-lhe da falta que fazia sua presença, antes de sua ida, como diziam, para sempre? Mas para onde ela fora, se agora estava ali de volta como eu sempre esperara? Havia um entrelaçamento de nossas vidas, é verdade. Ela estava ali, vendo-me, convivendo comigo!
De repente, o inusitado. As portas todas fechadas. E eu, sozinho, com uma eterna toalha cravada em meus braços…
Os pés, molhados, deixaram marcas no chão encerado. Recuei, com medo de que brigassem comigo. E se houvesse alguém lá por dentro? De repente, alguém entra em sua casa deixando marcas no chão!… Mas as portas seguiam, imóveis, paralelamente ao desconhecido.
Minha tia estava imóvel em minha lembrança. Meu cérebro pensava o Presente. Voltei para a sala. Olho o relógio: dez horas de um dia qualquer. No tapete verde-claro, as marcas de meu tênis. Uma pena!
Peguei o gravador na estante. Fechei a porta da frente. Restrito, na sala, examino o aparelho. Havia uma fita encaixada. Procurei uma tomada. Examinei os controles. O carretel rebobina-se. O Passado está nele. Uma voz diz que aquela é uma gravação da família e os ruídos de fundo apoiam esta afirmação. Mas a fidelidade dos sons e a situação ambiental fizeram-me surgir de uma sensação de medo.
Não sei como, em um gravador que eu nunca vira, numa casa onde entrara pela primeira vez, ressoava, agora a voz clara de meu tio antecipando o que está presente naquela gravação. Por trás, ruídos de vozes conhecidas para mim, ruídos de um ambiente familiar. Latidos de um cachorro… Um calafrio percorre-me o corpo. Dentro do estranho, índices familiares conduzem ao mistério. O inesperado, o inusitado de tudo isso está muito além de minha capacidade de explicá-los. Um familiar medo impulsiona meu dedo para acionar a tecla de parar o avançar da fita. Mas, talvez, o desvendar de algo novo nela esteja contido. Detenho o movimento, segue-se o desenrolar do carretel em busca do Passado. Ou da presença do Futuro?
Abrem-se as portas do corredor. O relógio volta a funcionar. Os diálogos sucedem–se… Na fita… Na sala… Movem-se as pessoas como se o tempo voltasse buscando continuar de um ponto em que cessaram, abruptamente, situações que precisassem ser revividas…
Continuo de calças curtas, sujo de terra e de poeira. Ainda não fui tomar o banho. A música escorrega das bordas dos alto-falantes, transborda, entra, movimenta o relógio, as portas, o vento. Vem, agora, de fora da casa. Esbarrando na que sai, com ela faz um rodamoinho. As vozes das pessoas vêm de dentro, do corredor, vêm com elas. As pessoas passam por mim. Querem o banho que ainda não tomei. Exigem diálogos umas das outras. Falam-se alto, falam murmurando. As palavras geradas pelo gravador transformaram-nas em diáfanas presenças como imagens que houvessem saído de dentro de um tempo. Dos alto-falantes as falas transferiram-se para os lábios de seres que… já não mais existem! E eles estão aqui, à minha volta. Sinto-os, contudo, em outro espaço. Vêem-me, sim. Afeta-lhes minha presença. Mas existe algo, um enigma, um limite, uma separação. Vibramos diferentemente. Não sei!… O tempo retorna? Ou o Presente avançou? Fatos desaparecidos no turbilhão do tempo retornam neste ambiente mágico. Em que mundo estou, que recursos estão em mim para dar vida à vida que ficou no Passado?
O medo já não existe. A presença deles me acalma. Insiro-me nos fatos. Na verdade eles existem mas… existem onde? Na fita do gravador? O que está no íntimo das coisas, do cavalo, da casa, da cadeira de balanço, do relógio, de tudo, enfim?
– Meu filho, você ainda não tomou banho?
Tropeço na música, nas vozes, nas pessoas, no fio… A música estanca-se. O movimento do carretel deteve-se. Voltou a inércia. O resto do ambiente foi saindo pelas portas que se iam fechando. Abriu-se no espaço um vértice que, tal o olho de um tornado, sugava em turbilhão todo o inexplicável que ali estava. Eu, extático, absorvido por um paralisante deslumbramento, queria perguntar, ficar mais tempo a ponto de, recuperado da surpresa, surpreender a verdade daquilo tudo, recuperar um tempo que me fugiu, um tempo que o próprio tempo escorregou-se de subtrair de minha vida. Agora, posto de novo em sua presença, buscando as explicações, falta-me de novo o chão, falta-me o espaço.
Ao meu lado direito, a porta da rua. A rua, que estava fechada, e a densidade que comprimia outra vez a dormência muda da sala retornaram do Presente. Retiraram-se para o Futuro, ou para o Passado, não sei bem. Ergo-me de uma cadeira na qual nem me recordo de ter sentado. Volto-me para ela. Está muda. Contudo sinto que, sua forma composta de madeira, tecido e estofo, sua forma física oculta dados intrínsecos a fatos passados que se desenrolaram em seu entorno. Nas paredes, nos objetos, nos móveis e retratos, por trás deles, na essência deles estarão guardados indícios, rastros do que se foi. Pode ser. Pode ser que uma energia gerada no desenrolar das vidas dos seres, sejam eles quais forem, refugie-se no ambiente, nos objetos que testemunharam e que, de certa forma, vivenciaram fatos. Desvendar esta energia, ler suas entranhas, sua essência… Mas como?
Vou ligar o gravador…